Há duas décadas atrás, lá pelo final da década de
80, Mestre Giz reinava na escola e era a última palavra depois do livro didático.
Tinha um enorme orgulho, aliás, de conhecer o livro didático, seu mestre, de
cabo a rabo. Suas aulas eram impecáveis e se você perdesse uma delas na sexta
série A, poderia assistir a mesma aula na sexta série B, pois Mestre Giz tinha
uma aula tão “redondinha” que até as piadinhas eram perfeitamente encaixadas no
contexto da aula. Absolutamente tudo sem imprevistos e nem improvisos.
Como que por mágica, Mestre Giz deu uma cochilada
numa bela e preguiçosa tarde, logo depois do almoço, e viu-se transportado no
tempo para uma década adiante, lá pelo final dos anos 90, na virada para 2000.
Acordou babado e meio assustado com o que viu: uma sala cheia de computadores,
com uma Internet meio capenga e dezenas de cadeados por todos os lugares
possíveis. Era a escola tecnológica chegando.
Mestre Giz logo desconfiou daquela parafernália
toda e concordou de imediato com a gestão da escola de que era preciso colocar
muitos cadeados nas portas e impedir os mortais comuns de mexerem naquelas
coisas, evitando assim quebrá-las. Também concordou que seria preciso muito
treinamento, formação e projetos inovadores nos próximos anos para que se
pudessem usar aquelas coisas e, acima de tudo, era preciso saber para que se
usariam aquelas coisas. Se era para ensinar, ele não precisava, pois já sabia
fazer isso.
Dias, semanas, meses e anos se passaram e os
alunos revoltosos continuavam querendo usar aquelas maquininhas. Mas para quê?
Mestre Giz até foi obrigado a fazer um curso sobre como usar um tal de Word e
outro Excel, mas já havia esquecido tudo e, além disso, ele não precisava
realmente daquilo. Alguns colegas, até mais velhos do que ele, já tinham
computadores em sua casa e os usavam, até para “surfar” na Internet, e ele
mesmo já havia comprado um para sua filha, mas na escola as coisas eram
diferentes porque faltava alguma coisa a mais para poder usar os computadores:
faltava um motivo!
Certa vez um professor metido a diferente levou a
classe até a Sala de Informática, mas quebrou a cara porque os computadores
estavam muito velhos e desatualizados e a Internet nem funcionava em alguns
computadores. Além disso, os alunos usavam as Lan Houses do bairro e dispunham
de máquinas muito melhores em suas próprias casas. Mestre Giz não pôde esconder
um certo sorriso de satisfação ao ver comprovada a sua tese de que aquelas
maquininhas eram mesmo inúteis na escola.
Como o tempo é o grande carrasco das verdades
absolutas, um dia aquele professor teimoso, de tanto teimar, conseguiu fazer
algo dar certo na Sala de Informática. Não foi nada de muito sofisticado,
apenas uma pesquisa rápida na Internet e um texto, digitado naquele tal de
Word. Pura perda de tempo, concluiu logo Mestre Giz. A cena se repetiu outras
vezes e até mesmo com outros professores, mas a grande pergunta de Mestre Giz continuava
sem resposta: e para que EU preciso disso?
Hoje cedo Mestre Giz levantou da cama pelo mesmo
lado que sempre levanta, pisou com o pé direito primeiro, como sempre, e tomou
seu café com leite e pão com manteiga antes de ir para a escola. Escola que,
aliás, parece cada dia pior. Os alunos já não têm mais tanto respeito como
antes e nem demonstram muito interesse pelas suas aulas que, à propósito,
continuam “redondinhas” como há duas décadas! “Azar o deles”, sentencia Mestre
Giz.
Alguns colegas professores andam com notebooks ao
invés de cadernos, e usam um tal de data-show de vez em quando, ao invés do
projetor de slides. Parece que é melhor, mas dá muito trabalho fazer alguma
coisa no computador para depois ter que usar o notebook da escola e o data-show
e, além disso, não há ninguém na escola para fazer toda essa montagem para os
professores. Os professores têm que, eles mesmos, colocarem as imagens no
computador e ligar tudo no data-show. Assim fica muito difícil, conclui para si
mesmo Mestre Giz, com um certo ar de espanto com aqueles professores que
conseguem fazer essas coisas sozinhos e sem cursos ou formações especiais.
Na hora do intervalo, Mestre Giz fez as contas
para sua aposentadoria e descobriu que agora falta pouco. Ainda bem, pensou ele,
afinal a escola mudou muito e está cada dia mais difícil ensinar. Ele tem pena
desses professores mais novos que são obrigados a usarem computadores,
Internet, data-show, DVD e outras porcarias para poderem ensinar suas
disciplinas. Ele nunca precisou de nada disso. É pena também que os alunos não
saibam dar o merecido valor às suas aulas e não entendam que ele já sabe tudo o
que os alunos precisam saber. É pena que a juventude ache que pode escolher o
que aprender só porque tem uma tal de Internet e que passem tanto tempo nos
computadores ao invés de estarem mergulhados nos livros.
Quando estava saindo para o almoço uma aluna lhe
perguntou se não podia entregar em um CDROM a pesquisa que ele passou como
tarefa, ou mandar por e-mail. É claro que ele respondeu que não. E como esses
alunos estão a cada dia mais atrevidos, a garota lhe perguntou com a maior
inocência “porque não?”.
Sacando como sempre de sua arma mais poderosa, a
razão, Mestre Giz disparou na aluna o mesmo petardo que vem disparando há duas
décadas em todos aqueles que lhes questionam o porquê dele simplesmente se
negar a usar as novas tecnologias na educação: “Ora, minha cara, eu não preciso
de nada disso para lhe ensinar minha matéria”. Mas, desta vez, ao invés do
silêncio que costuma receber em resposta, a garota, atrevida que é, parece que
resolveu retrucar com algo que até então Mestre Giz ainda não havia
compreendido muito bem: “Eu sei que VOCÊ não precisa, professor, mas EU preciso
e PRECISAREI A VIDA TODA. Porque não posso usar então?”.
E agora, Mestre Giz?
(*) Este texto é uma fábula. Ele é totalmente fictício. Mestre Giz, ou professores que acreditam que não precisam usar as novas tecnologias na escola porque são capazes de ensinar sem elas, e que desconhecem a necessidade que os alunos têm de aprender com elas, são personagens inexistentes na vida real. Qualquer semelhança entre os personagens dessa fábula e a realidade cotidiana de uma escola é mero fruto da sua própria imaginação.
(*) Para citar esse artigo (ABNT, NBR
6023):
ANTONIO, José Carlos. E agora, Mestre Giz?, Professor
Digital, SBO, 18 set. 2009. Disponível em:
.
Acesso em: [coloque aqui a data em que você acessou esse artigo, sem o
colchetes].
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